No universo do ultraciclismo, há uma pergunta que inevitavelmente surge em algum momento da prova: “É melhor dormir ou continuar pedalando?” Quando as horas se acumulam, os músculos já gritam de cansaço e o sono começa a embaralhar a mente, essa decisão pode mudar o rumo de toda a jornada. Dormir significa perder tempo precioso — mas continuar acordado pode custar caro, tanto física quanto mentalmente.
Esse dilema se intensifica em provas de longa duração, como as de 600, 1.000 ou até mais de 1.200 quilômetros, onde o tempo limite e as condições do percurso pressionam o ciclista a fazer escolhas estratégicas — e muitas vezes arriscadas. Foi exatamente isso que vivi durante uma dessas provas desafiadoras, em que optei por dormir apenas duas horas ao longo de mais de 40 horas de pedal praticamente ininterrupto.
Mas como o corpo responde a esse nível de privação? E a mente, será que acompanha ou entra em colapso?
Neste relato, compartilho como foi enfrentar o desafio de equilibrar esforço, sono e lucidez numa jornada extrema sobre duas rodas.
Spoiler: teve superação, teve confusão mental… e teve até momentos em que a linha entre sonho e realidade ficou perigosamente tênue.
Preparado para pedalar comigo por essa experiência intensa? Vamos lá.
A Largada: Energia Alta e Mente Focada
A largada de uma prova de ultraciclismo tem uma energia única. É aquele momento em que o corpo ainda está inteiro, a cabeça cheia de planos e o coração batendo no ritmo da empolgação. No dia da prova, o clima estava favorável — céu limpo, temperatura amena, e aquele burburinho animado entre os ciclistas, misturando nervosismo e expectativa.
Eu sabia que estava prestes a encarar mais de mil quilômetros de estrada. O plano era simples no papel: manter um ritmo constante, parar o mínimo possível e, se tudo corresse bem, dormir no máximo duas ou três horas durante toda a jornada. Isso mesmo — já na largada, eu carregava comigo essa meta ousada: sacrificar o sono para ganhar tempo.
As primeiras horas foram tranquilas. O corpo respondia bem, as pernas giravam soltas e a cabeça estava limpa. Aproveitei para comer a cada 45 minutos: sanduíches leves, frutas, barrinhas e bastante água com eletrólitos. A ideia era evitar qualquer queda brusca de energia, principalmente no começo, quando a empolgação podia facilmente me fazer esquecer da importância da nutrição constante.
O planejamento de sono? Em teoria, sim. Na prática, quase inexistente. Minha estratégia era simples: só parar para dormir quando não houvesse mais escolha — quando os olhos começassem a pesar e a lucidez ameaçasse escapar. Até lá, o objetivo era pedalar o máximo possível, aproveitando o estado de alerta natural das primeiras 12 a 18 horas.
E foi com essa mentalidade — mente focada e corpo cheio de energia — que iniciei a prova. Mal sabia que, algumas dezenas de horas depois, eu estaria questionando cada uma dessas decisões enquanto tentava me manter acordado em meio ao vazio da madrugada.
A Noite Chega: O Primeiro Encontro com o Sono
Com o cair da noite, tudo muda. A estrada, antes vibrante e cheia de estímulos, se transforma num corredor escuro e silencioso. A temperatura cai, a luz some e a monotonia se instala. O que antes era empolgação, agora começa a virar desafio real — não apenas físico, mas mental.
Foram cerca de 15 horas de pedal até o primeiro sinal claro de que o corpo começava a cobrar o preço: a cabeça pesava, os olhos ardiam e o foco começava a se dissipar. O cansaço não chegou de uma vez, mas foi se insinuando devagar, como quem não quer atrapalhar, até se tornar impossível de ignorar.
O silêncio da madrugada foi o primeiro adversário. Sem carros, sem conversas, sem qualquer estímulo visual além do facho de luz do meu farol, a mente começou a pregar peças. Eu tentava manter o ritmo, mas os pensamentos ficavam cada vez mais desconexos, como se estivesse à beira de um sonho — pedalando no limiar entre realidade e delírio.
Começou, então, a batalha contra o sono.
Coloquei fones de ouvido e aumentei o volume. Rock acelerado, músicas conhecidas, refrões que eu podia cantar mentalmente. A música ajudava, mas não era suficiente. Tentei puxar conversa com outro ciclista que estava próximo, mas logo ele se distanciou — cada um preso à sua própria luta interior.
Foi aí que recorri à cafeína. Um gel energético com cafeína, depois um gole de refrigerante com açúcar. A explosão de sabor e o estímulo químico me deram uma nova injeção de ânimo. Por algumas dezenas de quilômetros, voltei a sentir que tinha o controle. Mas era uma ilusão temporária — e eu sabia disso.
A certa altura, comecei a falar sozinho, como forma de me manter presente. Comentava com o vento, com a estrada, com a bike. “Vamos lá, só mais um pouco.” Repetia frases como mantras. Porque se eu me calasse, o sono voltava a se infiltrar.
Essa foi, sem dúvida, uma das partes mais duras da prova. O corpo ainda funcionava, mas a mente já estava oscilando. O sono não era só cansaço — era um inimigo sutil, que me seduzia a cada minuto, oferecendo um descanso breve que podia custar todo o meu planejamento.
Mas eu segui. Sem dormir. Ainda não era hora.
Quando o Corpo Implora por Pausa: As 2 Horas de Sono
Chegou um ponto em que não dava mais. O corpo já não obedecia como antes, os olhos piscavam por vontade própria, e a linha entre realidade e imaginação começava a borrar. Já fazia mais de 30 horas desde a largada — com breves pausas para alimentação, ajustes e hidratação — e eu seguia firme na bicicleta, mas cada vez menos firme em mim mesmo.
A decisão de parar para dormir não foi estratégica, foi necessária. Eu sabia que continuar naquele estado era perigoso. A concentração já estava comprometida, e a chance de cometer um erro bobo — como errar o caminho, ignorar um sinal de trânsito ou simplesmente cair da bike — era real.
Encontrei um pequeno posto de apoio improvisado por voluntários em um vilarejo à beira da estrada. Não havia luxo, mas havia o essencial: um lugar seguro, um chão plano e, para minha sorte, um colchonete disponível no canto da sala. Sem pensar duas vezes, tirei os sapatinhos de ciclismo, deitei com a mesma roupa suada e pus o alarme para tocar em exatas duas horas.
A sensação de deitar foi indescritível. O corpo mergulhou em um alívio imediato, como se estivesse esperando por aquilo há dias. Mas o sono não veio tão rápido quanto eu esperava. A mente ainda estava agitada, em ritmo de prova. Foi preciso algum esforço para desligar. Quando finalmente adormeci, o mundo ao meu redor sumiu. Foi um apagão absoluto.
Acordei com o alarme tocando, sem saber exatamente onde estava. O cérebro demorou alguns segundos para entender que eu ainda estava em uma prova, que o tempo estava correndo e que a bicicleta me esperava do lado de fora. Levantei meio grogue, com o corpo pesado, a visão embaçada e uma estranha mistura de alívio e desorientação.
Foram apenas duas horas. Curtas, mas preciosas. O suficiente para restaurar parte da energia mental e dar uma “reiniciada” no sistema. As pernas ainda estavam cansadas, claro. Mas a lucidez havia voltado — e isso, naquele momento, era tudo o que eu precisava para seguir.
Com o sol nascendo e uma nova etapa à frente, respirei fundo, prendi o capacete e montei de novo na bike.
A jornada estava longe de acabar.
Segunda Perna: Pedalando com o Corpo em Modo Sobrevivência
Depois das duas preciosas horas de sono, o corpo despertou, mas de forma diferente. Era como se tudo estivesse funcionando… mas no modo econômico. As pernas giravam, sim, mas sem aquela resposta firme do início da prova. A mente estava mais lúcida, porém sensível — como se qualquer ruído mais alto, vento contrário ou subida inesperada fosse o gatilho para um colapso.
Essa era a nova realidade: sobrevivência sobre duas rodas.
Nos primeiros quilômetros após o descanso, senti uma leve melhora. A cabeça clareou, a paisagem ganhou contornos mais definidos e até arrisquei uma conversa com um ciclista que vinha no mesmo ritmo. Mas não demorou para os sintomas da exaustão extrema voltarem a se manifestar — desta vez, de forma mais sutil, porém persistente.
A fadiga já não era apenas física. Era emocional. Eu oscilava entre momentos de euforia, como se estivesse prestes a cruzar a linha de chegada, e instantes de completo desânimo, em que tudo parecia impossível. Pequenos desafios — um vento lateral, uma subida mais longa, uma dor no joelho — ganhavam proporções épicas. A paciência era mínima, e a sensibilidade, máxima.
Foi nessa fase que as alucinações leves começaram. Sombra de árvore que parecia se mexer, sensação de estar sendo seguido por um carro silencioso que nunca passava, placas que pareciam piscar… A mente, privada de descanso real, começava a preencher as lacunas com imaginação. Nada assustador ainda, mas o suficiente para saber: o cérebro já estava operando sob estresse extremo.
E então vem o ponto crucial: a força mental. Quando o corpo já não entrega, é a cabeça que precisa assumir o controle. Nesse momento, você não pedala só com as pernas — você pedala com propósito, com persistência, com memórias de treinos duros, com lembranças de superações passadas. Você busca dentro de si razões para continuar, e se agarra a cada uma delas.
Olhar para frente, pensar em pequenos trechos, contar postes, ouvir músicas da infância, repetir frases de incentivo… Tudo serve para manter o foco. Porque se a mente se desviar, o corpo desiste. E desistir, nesse ponto da prova, não era uma opção.
A Chegada: Superação ou Exaustão Total?
A chegada em uma prova de ultraciclismo é um momento que parece existir fora do tempo. Depois de tantas horas em movimento, tantos quilômetros percorridos, tanto desgaste físico e mental… tudo se concentra em um único instante: o cruzar da linha de chegada.
Quando avistei o pórtico ao longe, meus olhos se encheram d’água. Não era só o cansaço. Era o peso de tudo o que ficou para trás naquela estrada: o sono reprimido, as dores, as incertezas, os diálogos internos que quase me convenceram a parar. Cada pedalada até ali foi uma escolha. E naquele momento final, o corpo parecia reconhecer: “Você conseguiu.”
Mas junto com a emoção veio também a exaustão total. Mal desci da bicicleta, senti as pernas trêmulas e o mundo girando um pouco mais do que o normal. A respiração ainda ofegante, o coração acelerado, a mente turva tentando entender que sim, era real — a prova tinha acabado. E eu estava inteiro.
Nos minutos seguintes, veio a reflexão inevitável:
Será que valeu a pena sacrificar tanto o sono?
A resposta… é complexa.
Por um lado, dormir tão pouco me permitiu manter um ritmo competitivo e concluir a prova dentro do tempo que eu havia planejado. Foi uma estratégia arriscada, sim, mas que deu certo — desta vez. Por outro lado, senti na pele o quanto isso impacta não só o desempenho, mas também o bem-estar físico e emocional. Houve momentos em que eu me perguntei, sinceramente, se estava indo longe demais.
Mas o ultraciclismo é isso. É sobre ir até os limites — e às vezes, um pouco além. É sobre testar o que o corpo aguenta, mas, acima de tudo, descobrir do que a mente é capaz.
Cruzar aquela linha foi mais do que completar uma prova. Foi uma declaração silenciosa: “eu aguento.” E mesmo que eu tenha chegado esgotado, havia também um sentimento de vitória que nenhum sono no mundo conseguiria oferecer.
Lições Aprendidas na Estrada
Depois de tantos quilômetros rodados e uma experiência tão intensa, é impossível não sair transformado. Cada prova deixa marcas — não só no corpo, mas principalmente na mente. E dessa vez, com apenas duas horas de sono em meio a dezenas de horas de pedal, as lições foram profundas.
A primeira grande reflexão é simples, mas poderosa: o sono é parte da estratégia, não um luxo. Em provas longas, resistir ao sono não é sinônimo de força — às vezes, é justamente o caminho mais curto para o erro. Hoje, entendo que uma mente descansada é tão importante quanto pernas fortes. Se eu pudesse voltar no tempo, talvez teria planejado ao menos mais uma pausa curta. Ter dormido mais cedo ou de forma mais espaçada poderia ter evitado momentos críticos que quase colocaram tudo a perder.
Também aprendi que cada corpo responde de um jeito. O que funciona para um ciclista pode ser desastroso para outro. Por isso, experimentar em treinos, conhecer seus próprios limites e sinais de alerta é fundamental. Aquela sonolência leve pode virar um apagão em poucos minutos — e em cima de uma bike, isso tem consequências.
Para quem encara ou sonha em enfrentar desafios assim, aqui vão algumas dicas valiosas:
Planeje o sono como parte da prova. Nem que seja uma soneca de 30 minutos, saiba onde e quando parar.
Sinalize para sua equipe de apoio quando estiver à beira do colapso. Às vezes, os outros percebem antes de você.
Use a mente a seu favor. Meditação, visualização positiva e frases de incentivo podem te manter no eixo quando o corpo não ajuda mais.
Não tenha medo de parar. Dormir por uma hora pode te fazer recuperar muito mais tempo depois, com mais segurança e lucidez.
Cada pedalada nessa jornada foi um lembrete de que, no ultraciclismo, não é apenas a linha de chegada que importa — é a forma como você chega até ela. E, principalmente, o que você leva consigo depois.
Conclusão
No ultraciclismo, cada decisão conta. E talvez nenhuma seja tão delicada quanto o dilema entre dormir ou seguir pedalando. Parece simples à primeira vista — mas na estrada, sob o peso do cansaço, do relógio e da própria ambição, essa escolha ganha uma profundidade que só quem já viveu entende.
Dormir pode parecer um recuo. Uma pausa em meio ao desafio. Mas a verdade é que, em provas extremas, descansar também é uma forma de avançar. O corpo precisa. A mente implora. E ignorar esse chamado pode ter um preço alto — tanto em desempenho quanto em segurança.
Depois dessa prova, com apenas duas horas de sono e uma jornada que levou meu corpo e mente ao limite, ficou claro que a superação não está apenas em resistir, mas também em reconhecer quando parar é preciso.
E você?
Se estivesse ali, no escuro da madrugada, com o corpo pedindo descanso e a linha de chegada ainda distante…
Você escolheria dormir ou continuar pedalando?
Já passou por algo parecido?
Quantas horas de sono você arrisca numa prova longa? Já se pegou lutando contra o sono no selim, ou tomando aquela decisão difícil de parar por alguns minutos?
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A estrada ensina — e cada história pedalada merece ser contada. 🚴💬